sábado, 15 de janeiro de 2011

MATA, ARRASA E LEVA EMBORA

É a lama, é a lama. Poço Fundo, o sítio da família de Tom Jobim na pequena São José do Vale do Rio Preto, RJ, também foi parcialmente destruído pelas enchentes da região serrana. O rio que dá nome à cidade transbordou e arrastou casas, árvores e animais às suas margens, inclusive na propriedade que foi inspiração e cenário de, entre tantas canções de Tom, "Águas de Março" (1972).

A letra do samba está cheia de imagens proféticas: é pau, é pedra, é o fim do caminho; é a chuva chovendo, é o fundo do poço, é a noite, é a morte; no rosto o desgosto, é um pouco sozinho -embora, na origem, o poeta estivesse descrevendo as águas que, fechando o verão, lavavam a alma e eram uma promessa de vida no coração do ouvinte.

Mais cruel ainda é saber que o delicioso "riachinho de água esperta", da letra de "Chovendo na Roseira" (1970), também se tomou de fúria destruidora ao se lançar no vasto rio de águas (não mais) calmas. E, em vez da "chuva boa,/ criadeira,/ que molha a terra,/ que enche o rio,/ que lava o céu,/ que traz o azul", veio aquela que, com a ajuda da imprevidência humana, mata, arrasa e leva embora.


Tom via a chuva como uma força benigna, regeneradora. Outro exemplo está na letra de "Correnteza" (1975), dele com Luiz Bonfá: "Depois da chuva passada/ Céu azul se apresentou/ Lá à beira da estrada/ Vem vindo o meu amor...". Não que ele desprezasse a força da natureza quando provocada: "Cadê meu caminho, a água levou/ Cadê meu rastro, a chuva apagou/ E a minha casa, o rio carregou", escreveu em "Passarim" (1985).

Tom bem que fez a sua parte. Ao assumir a direção do sítio, cerca de 1970, propôs-se a ressuscitar a mata nativa da região, praticamente destruída. Quase metade dela se recuperou. Mas não houve tempo para que aquela terra, tão rica de música e poesia, se salvasse da correnteza cega e surda.


(Ruy Castro - Jornal Folha de São Paulo
Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 2011)

Um comentário:

Álbum da Artesã disse...

Oi Mima,
Tenho refletido sobre isso e, por vivência ,,, nos anos 50, 60 e 70 tivemos várias catástrofes climáticas, nos 80 e 90 também, então pq só agora - sensação pessoal, desde os 2000 - nos parecem muito maiores?
Seria a Mídia que hoje é imediata ou estamos vivendo novo ciclo climático que o planeta terra tem sofrido há bilhões de anos?
2011 Bj♥s para ti e muito grata pela escolha de textos que tanto aprecio.