domingo, 7 de abril de 2013

VER VENDO






De tanto ver, a gente banaliza o olhar - vê... não vendo.

Experimente ver, pela primeira vez, o que você vê todo dia, sem ver.

Parece fácil, mas não é: o que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade.

O campo visual da nossa retina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta.

Se alguém lhe perguntar o que você vê no caminho, você não sabe.

De tanto ver, você banaliza o olhar.

Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório.

Lá estava sempre, pontualíssimo, o porteiro.

Dava-lhe bom-dia e, às vezes, lhe passava um recado ou uma correspondência.

Um dia o porteiro faleceu. Como era ele?

Seu rosto? Sua voz? Como se vestia?

Não fazia a mínima ideia.

Em 32 anos nunca conseguiu vê-lo.

Para ser notado, o porteiro teve que morrer.

Se um dia, em algum lugar estivesse uma girafa cumprindo o rito, pode ser, também,
que ninguém desse por sua ausência.

O hábito suja os olhos e baixa a voltagem.

Mas há sempre o que ver: gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê que o adulto não vê.

Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo.

O poeta é capaz de ver pela primeira vez, o que de tão visto, ninguém vê.

Há pai que raramente vê o filho.

Marido que nunca viu a própria mulher.

Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos... é por aí que se instala no coração
o monstro da indiferença.


Otto Lara Rezende